— A fila começa aqui?
A gentil senhora, muito elegante com seus cabelos brancos, olhou bem para mim e respondeu com solidária bonomia, na lata:
— Aqui é a fila dos idosos. Mas se o senhor quiser... pode ficar aí mesmo...
Agradeci, e fiquei. Porque, àquela altura da vida, diante da enorme fila de hora do almoço na agência dos Correios, na rua Estados Unidos, nos Jardins - quando quase todos os funcionários vão almoçar na mesma hora, e vira a maior zona -, melhor seria deixar a vaidade besta de lado e aceitar a sugestão.
Detesto fazer essas coisas, de passar na frente dos outros, e achava até então que ainda não tinha idade para merecer lugar na fila dos idosos. Mas como ninguém na fila reclamou, nem o moço do guichê que me atendeu, convenci-me de que estava, sim, no meu direito -- e dane-se o mundo.
Agora que voltei a andar a pé, e a freqüentar as filas dos Correios, dos bancos, dos supermercados, das padarias, das farmácias, do INSS e todas as outras que o progresso e a superpopulação da metrópole criaram, estou descobrindo Coisas novas, além da minha recém-condição de idoso.
Explico: depois de dois anos em Brasília, só andando de carro, avião ou helicóptero, via a vida de um jeito — meio de longe, digamos assim. Ao voltar para São Paulo e mudar para o cosmopolita Jardim Paulista, depois de trinta anos vivendo ao lado da Cidade Universitária, um lugar meio ermo, passei : a deixar o carro na garagem e a fazer tudo a pé — e comecei a ver a vida de outro jeito.
É muito melhor, mais divertido. Você conhece um monte de gente; a cada dia depara com uma novidade. Fica sabendo o que as pessoas estão pensando, com o que estão preocupadas, se vai chover ou não, como anda o futebol, das mais recentes modalidades de assaltos em prédios, do barzinho novo que abriu, qual o melhor café ou chope do pedaço, do flagrante do Chico Buarque namorando na praia, do buraco na rua que ninguém fecha, quem morreu, quem nasceu, essas coisas.
E eu garanto: o que ouvi por estes dias andando pelas ruas em volta do meu novo endereço não tem nada a ver com o que ouvia em Brasília, nos gabinetes da praça dos Três Poderes ou nos jantares com meus colegas de governo ou jornalistas, sempre nos mesmos restaurantes, sempre os mesmos papos.
Não ouvi mais ninguém falar da famigerada "eleição da Mesa da Câmara", das parcerias público-privadas, dos embates entre governo e oposição, das crises na base aliada e das futricas na Esplanada dos Ministérios, da política de juros ou da reforma ministerial. Juro: nenhum comentário que ouvi na minha nova vida de pedestre era sobre estes assuntos que sempre assolam o noticiário.
Descobri também que tem cada vez mais gente andando a pé na cidade. Por falta de dinheiro para a condução ou por não suportar mais dirigir no trânsito sempre engarrafado, o fato é que São Paulo passou a ter congestionamento nas calçadas e, daqui a pouco, vão ter que botar guardas para organizar o tráfego de transeuntes.
Aliás, há quanto tempo não ouvia esta palavra - transeunte? Pois é, agora sou apenas mais um deles, e dou graças a Deus. Está me sobrando tempo até para ir à feira-livre, e ainda posso escolher em qual ir, porque tem duas muito boas aqui perto de onde moro. Agora, posso ver minha única neta quase todo dia, porque o berçário dela fica a apenas quatro quadras de distância.
Não tem nada melhor para um idoso - tudo bem, assumo - do que pegar o carrinho e ir buscar a neta a pé, parar nas vitrines, tomar um bom café expresso no bar da esquina, sem pressa, sem medo. Na minha rua, a Oscar Freire, parece que tem mais seguranças particulares do que moradores. Mesmo assim, vira e mexe, os motoqueiros-assaltantes levam a bolsa de alguma velhinha da turma da minha nova amiga da fila dos Correios.
Se meu velho (no bom sentido) amigo Zuenir Ventura já gosta de São Paulo andando de carro — tem que vir um carioca aqui para falar bem de nossa cidade, porque uma das diversões de paulistano é falar mal do lugar onde mora -, posso imaginar como ele vai se encantar muito mais com tudo se da próxima vez virar pedestre.
Deixo aqui o convite, caro Zuenir: vamos juntos andar a pé pelo Jardim Paulista, entrar por velhas galerias com antiquários fantásticos e sair por vilas em ruas sem saída, tomar o melhor expresso que tem no mundo, aqui em frente ao meu prédio. Se não fosse pela ausência do mar, tenho certeza de que você nunca mais iria querer sair daqui. Também, não se pode ter tudo na vida...
A partir do livro "Uma Vida Nova e Feliz" (Ediouro)
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