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Abdias Nascimento e Nelson Mandela |
É um túmulo que dorme não sei onde. Talvez na
Alemanha, talvez na Áustria.
Mas não
importa a terra. O que importa é
a solidão
da palavra. Lá
está
escrito: —
“Rosa, pura contradição
/ Volúpia
de ser o sono de ninguém
/ Sob tantas pálpebras”.
E o epitáfio
que Rainer Maria Rilke teceu para si mesmo.
Tantas pálpebras,
rosa, sono de ninguém,
volúpia,
ainda rosa. Passaria horas invertendo, trocando, repetindo, destruindo as
palavras. Mas publiquei o epitáfio
por uma pura e desesperada alegria auditiva. Na verdade, eu não queria falar de Rilke,
nem da rosa, mas do puro negro brasileiro.
Eis o caso: —
recebi, ontem, a visita de Abdias do Nascimento. Quando escrevo sobre ele,
digo: —
“o único
preto do Brasil”. Parece uma piada, e talvez o seja. Já me referi, várias vezes, ao espanto
de Sartre quando esteve no Brasil.
Ele fez, aqui, não
sei quantas conferências.
E, numa das vezes, caiu um toró
medonho. Era o que eu chamo (e aqui repito a imagem) um mau tempo de 5º ato do Rigoletto. Parecia,
sim, uma tempestade de ópera,
com relâmpagos
de curto-circuito e trovões
de orquestra. Apesar disso, não
faltou ninguém.
No meio da conferência
uma goteira começou
a pingar na platéia.
Ninguém
arredou pé.
(Descrevo as condições
meteorológicas
para caracterizar o sucesso.)
Ao terminar a palestra, Sartre não se conteve e fez a pergunta, irritado: — “E os negros? Onde estão os negros?”. O filósofo só tivera, até então, uma platéia louríssima, alvíssima, sardenta e de
olho azul. Podia perguntar, e tinha razão de perguntar: — “E os negros? Onde estão os negros?”. Perto de Sartre, um brasileiro cochichou para
outro brasileiro: —
“Os negros estão
por aí
assaltando algum chauffeur!”.
A mesma pergunta podia ser repetida, de brasileiro em
brasileiro. Quem olha os nossos presidentes, ministros, arquitetos, escritores,
mímicos,
veterinários
e palhaços,
há
de querer saber, como Sartre, onde estão os negros, os nossos negros. Outro dia, fiz esta súbita e singela constatação: — “Não há um palhaço negro”. E, se aparecer
um, será
apenas um e desabará
sobre ele uma solidão
jamais concebida.
Não
me falem de Rebouças.
Um Rebouças
é
um escândalo,
assim como a “mulher barbada”. Eis a nossa paisagem: — os cargos estão aí, as funções estão aí, as estátuas estão aí, e não vejo os negros. Ninguém esculpe um negro.
Ninguém
põe
um negro montado num cavalo de bronze. As casacas estão aí e não vejo negros de casaca.
E os negros que foram para a História estão
lá
humilhados e ofendidos.
Mas contava eu que o Abdias do Nascimento veio me ver. Entrou,
por coincidência,
numa hora para mim sagrada: —
a do mingau. Como já
disse, vivo a adular minha úlcera
com leite e papinhas. Saio com o amigo e vamos para o Cabaré dos Bandidos, que
funciona ali na esquina de Mem de Sá com Tenente Possolo. Peço o mingau; o Abdias, um Guaraná e uma empada. E ele começa a falar.
Eis o que queria o único negro do Brasil: — que se fizesse um movimento contra a África do Sul. A princípio não entendi, e ele
explica. Várias
nações
que participam das próximas
Olimpíadas
ensaiavam um protesto contra a admissão da África
do Sul. E por quê?
Claro. Por ser a única
terra onde o mais bestial racismo está perfeita e cinicamente institucionalizado. Achavam alguns que
seria uma vergonha a presença
de tal país
na comunidade olímpica.
E Abdias queria que o Brasil se juntasse aos que protestam. Uma
terra de tantos negros não
podia aceitar e competir com os deslavados racistas, Deixei o amigo falar. Mas
sei que se trata de um movimento inteiramente inócuo ou, por outra, puramente retórico. Ninguém
sairá
das Olimpíadas
por solidariedade aos negros da África do Sul. Eis a verdade: — o único
preto que nos comove é
o norte-americano, porque serve ao ódio contra os Estados Unidos.
Quando o Abdias acabou, eu o desiludi cruelmente: — “Não conte com o Brasil, não conte com o brasileiro”.
Ninguém
aqui fará
nada por negro nenhum, a não
ser, repito, pelo norte-americano, e como uma maneira de agredir os Estados
Unidos. Mas há
entre nós
e o crioulo da África
do Sul uma distância
infinita, milenar. Digo”distância”
não
geográfica,
mas emocional, espiritual, ética
ou que outro nome tenha.
Abdias reage com um argumento numérico: —
“Somos não
sei quantos milhões!”.
No meu espanto, digo: —
“Abdias, só há um negro, que é você mesmo. Não milhões, você, Abdias, só você”. Tive de explicar-lhe
que era ele o único
negro com plena, violenta, trágica,
consciência
racial. Era um negro exultante de o ser. A cor era a sua perene embriaguez.
Disse-lhe: —
“Quer que eu escreva? Contra a África
do Sul? Escrevo”. Apontei uma mesa adiante: — “Subo naquela mesa e darei um morra à África do Sul”. E meu
berro será o
único,
e não
arrastará
um único
e escasso idiota. Abdias me ouvia só, e atônito.
Continuei. Disse-lhe: —
“No Brasil, o branco não
gosta do preto; e o preto também
não
gosta do preto”.
Contei-lhe que, na véspera, apanhei um táxi, depois do serviço. O motorista era um crioulão jucundo, um riso forte, abaritonado, de Paul Robeson. Veio
conversando comigo. Como ele trabalhava de noite, falei dos assaltos. O preto
riu, feroz: “Pra crioulo, não
paro. De noite, preto não
entra no meu carro”. E ele próprio
era um negro total, de ventas esplêndidas, enormes lábios africanos.
Claro que todos nós falamos em democracia racial. Gilberto Freyre afirma que
somos uma democracia racial. Mas está de pé
a pergunta de Sartre: —
“E os negros? Onde estão
os negros?”. Realmente, ninguém
é
negro, a não
ser o Abdias do Nascimento. (Apareceu outra negra confessa: — a cantora Maria d’Aparecida.
Há,
portanto, dois negros no Brasil.) Mas a Carolina de Jesus é uma Maria Antonieta.
Não
há
na Terra ninguém
mais só
do que o nosso preto. Um esquimó
tem a companhia de meia dúzia
de outros esquimós.
Mas a solidão
do negro brasileiro não
tem nem a companhia do próprio
negro.
Nelson Rodrigues (11/03/1968)
A partir do livro "O Óbvio Ululante" (Cia. das Letras, p. 167)
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