Ilustração: Leo Martins
Quem tem mãe tem tudo. É o que se diz, é o que se ouve, é o que se sente. E ao perdê-la, se somos crianças, ficamos órfãos, uma palavra que significa — em sua essência — abandono, solidão, desamparo, atraindo olhares piedosos. É comum ouvirmos de um adulto sobre uma criança sem mãe:
— Coitadinho, é órfão.
Mas, se somos adultos, não nos veem nem nos sentimos assim, como se a orfandade fosse uma doença infantil. Mas não é. E a mãe faz falta sempre, até quando já somos, nós também, pais e até avós ao perdê-la, como no meu caso. Minha mãe mesmo, já velhinha, sempre que falava ou ouvia falar na mãe que perdera, minha doce vó Leonor, suspirava, inconsolavelmente saudosa, como se a perda fosse recente. E sua orfandade, no entanto, ela carregou por mais de cinquenta anos, até o dia em que ela mesma se foi.
Minha mãe andava descalça, já contei isso aqui, mesmo em dias frios, mesmo pisando no cimento do quintal, indiferente aos pedidos dos filhos, temerosos de que se resfriasse no rigoroso inverno paulistano da minha infância. Era informal, simples como um copo de água. Só se sentava à mesa, para fazer as refeições, se estivéssemos todos. Se sozinha, comia frugalmente, com o prato na mão, de pé, encostada ao fogão. Tenho essas imagens diante de mim, permanentemente. Já adultos, quando a convidávamos para nos acompanhar a um restaurante, ela dizia:
— Nada de restaurante, meu filho. Ficamos aqui, comemos uma comidinha gostosa, feita em casa, que é mais saudável e vocês não gastam dinheiro.
Para minha mãe, a casa era tudo. O amor, a felicidade, a saúde, tudo estava na casa. O ninho, o abrigo, a colmeia. Nas festas de aniversário, diante da mesa forrada de delicados docinhos e salgadinhos, orgulhava-se ao destacar:
— Tudo feito em casa.
Nossa família era uma orquestra, e a nossa casa, um palco. E ela regia e procurava nos manter harmoniosos. Meu pai desafinava, atravessava o ritmo, já que, ao contrário dela, gostava do clube, dos restaurantes chiques, das temporadas em São Lourenço, nas tais estações de água, onde minha mãe jamais esteve. Ela ficava em casa, na casa, com a casa — que significava os filhos, o cachorro, o gato e as árvores do quintal.
Quando um de nós aparentava tristeza, ela aconselhava:
— Olhe para o céu e peça a Deus para ajudá-lo.
Num dia de céu escuro, nuvens pesadas, ameaçando uma tempestade, eu brinquei:
— Mas com essas nuvens negras, mãe?
E ela:
— Deus está acima das nuvens.
E, ainda no campo da religião e da fé, minha mãe era uma católica fervorosa, mas peculiar. Acreditava no céu e no purgatório, mas negava o inferno. Eu a provocava:
— Mas isso é um contrassenso, mãe. Se a senhora acredita no céu e no purgatório, tem que forçosamente acreditar no inferno.
Ela não se entregava:
— Contrassenso é a Igreja pregar que Deus é a suprema misericórdia e ao mesmo tempo querer que se aceite ser Ele capaz de mandar seus filhos para o fogo do Inferno por toda a eternidade. Que misericórdia é essa?
Era o seu Deus particular. Também Ele feito em casa.
Minha mãe foi embora para sempre, aos 92 anos. Sinto falta até hoje do seu calor e da sua compreensão. Sou um órfão vitalício. E, em muitas ocasiões da minha vida, me lembro sempre dos versos do Drummond no poema A Mesa:
...e o desejo muito simples
de pedir à mãe que cosa,
mais do que nossa camisa,
nossa alma frouxa, rasgada...
de pedir à mãe que cosa,
mais do que nossa camisa,
nossa alma frouxa, rasgada...
Esta semana minha mãe estaria fazendo 110 anos. Que bela festa faríamos se ela estivesse viva. Docinhos e salgadinhos, tudo feito em casa.
A partir da Veja-Rio. Leia no original
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