Há uma pergunta clássica que não só os brasileiros vivem se fazendo, mas também os estrangeiros: que país é esse no qual convivem tantas contradições e que parece se divertir em ser irredutível às classificações e rebelde às previsões? Um francês, Roger Bastide, chamou-o de “país dos contrastes”, mas é possível que seja mais do que isso, que seja o país da ambigüidade.
Vai ver que não foi por acaso que “inventamos” o mulato, nosso jeitinho contra a polarização, síntese literal e metafórica do homem brasileiro. Para o antropólogo Roberto DaMatta, o mulato é a ilustração da tese de que o Brasil, ao contrário dos EUA e da África do Sul, gosta do intermediário, do meio-termo, do ambivalente e ambíguo.
Os jornalistas estrangeiros nos perguntam muito: “o Brasil é cordial ou violento? Se é cordial, como se explica tanta violência? Se é violento, por que as pessoas têm tanta joie de vivre, como se pode observar andando pelas ruas?” A única certeza é que não se consegue entendê-lo com olhos maniqueístas ou mesmo cartesianos. O Brasil nunca é uma coisa ou outra, mas as duas. Não é isso ou aquilo, mas isso e aquilo.
Complexo e meio imprevisível, ao mesmo tempo cordial e violento, generoso e mesquinho, honesto e corrupto, operoso e preguiçoso, egoísta e solidário, o povo brasileiro a toda hora desmente o que se diz dele, a favor ou contra. Em 1869, o Conde de Gobineau fez uma profecia. Cônsul da França no Rio, amigo e interlocutor do Imperador Pedro II, ele ficou mal impressionado com a nossa mistura de raças, cores e etnias, e garantiu que, como povo, o Brasil não duraria 200 anos.
Quando há uns dois anos Bill Clinton esteve no Brasil, um de seus diplomatas se referiu à nossa “corrupção endêmica”. No dia seguinte, o presidente do Supremo Tribunal Federal, o presidente do Senado, uma diretora da escola-de-samba da Mangueira e todas as facções políticas do país se uniram numa onda de revolta patriótica que só cessou com um pedido de desculpas. Aí aconteceu o inverso: desmontada a arrogância imperial americana, passou-se da indignação ao carinho e o presidente americano foi coberto de afeto.
Somos assim, cheios de altos e baixos: mudamos facilmente de humor e de opinião, passamos rapidamente de um extremo a outro. Dependendo da cotação de nossa auto-estima, ou somos os melhores ou somos os piores do mundo. Basta lembrar a última Copa do Mundo: o segundo lugar nos humilhou. Ou somos o primeiro ou não somos nada. Um dos explicadores de Brasil chegou a escrever, imaginem, que a tristeza é a nossa característica. “Numa terra radiosa vive um povo triste”, ele disse. Só é, se o observamos numa fila de hospital, espremido num ônibus, pingente de um trem, vendo a corrupção de sua elite, os escândalos. Mas experimente observá-lo numa festa coletiva, na alegria de uma comunhão de massa, num momento de celebração - no carnaval, ou numa festa de réveillon de Iemanjá.
Diz-se também que o povo brasileiro é omisso, não cumpre suas obrigações cívicas. No dia-a-dia, de fato, nem sempre servimos de exemplo para a civilidade e a cidadania. Mas também vivemos num cotidiano iníquo de violência e miséria. Em compensação, foi esse mesmo povo que levou o país a tomar posição contra o nazi-fascismo na Segunda Guerra, que saiu às ruas para derrubar as ditaduras do Estado Novo e a dos militares, que fez campanha pela anistia, pela volta dos exilados, pela redemocratização e que sobretudo provocou o impeachment de um presidente corrupto no começo dos anos 90. E isso sem sangue e sem violência.
Acho que o Brasil é um laboratório, no sentido de lugar ou espaço onde se fazem experiências em geral, boas ou más - um rico laboratório do ponto de vista racial, social e cultural. Ele é um laboratório de miscigenção, de multiculturalismo, de música, de cinema, de arquitetura e, claro, de futebol.
É curioso como o país nasceu com essa sina. Não é só uma vocação que ele tem, mas que lhe atribuem. Os primeiros textos, as impressões iniciais dos viajantes foram sempre de êxtase e encantamento. Os europeus achavam que se estava experimentando aqui algo de extraordinário: aqui era o laboratório de um novo homem.
Antes do descobrimento, antes da observação direta, a imaginação e a fantasia da velha Europa haviam povoado estas nossas terras com monstros e seres fantásticos, amazonas e animais descomunais. O primeiro choque foi o da normalidade: os descobridores se espantaram porque encontraram homens comuns e criaturas normais.
500 anos depois, o melhor é ainda deixar de lado os mitos de exaltação e os mitos de depreciação e admitir que nem sempre o país corresponde à imagem que se faz dele lá fora: às vezes é pior e às vezes, melhor. É um país comum, mas complexo. Para entender esse laboratório, o mais prudente é aceitar o conselho do grande maestro Tom Jobim, que dizia: “o Brasil não é um país para principiantes”.
Libération (Paris), 18/4/00. Leia no original
Imagem: por jonycunha
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