Ex-assessor de Lula aplica às eleições de 2010 sua tese do "realinhamento" do eleitorado brasileiro, caracterizado pela adesão das classes baixas ao "lulismo" (por verem em Lula a possibilidade de ascensão social sem confronto) e pelo afastamento da classe média tradicionalmente petista, após o escândalo do mensalão
Conta-se que certa vez o engenheiro Leonel Brizola teria levado o metalúrgico Lula ao túmulo de Getúlio Vargas em São Borja (RS). Lá chegando, o gaúcho pôs-se a conversar com o ex-presidente. Depois de algumas palavras introdutórias, apresentou o líder do PT ao homem que liderou a Revolução de 1930: "Doutor Getúlio, este é o Lula", disse, ou algo parecido. Em seguida, pediu que Lula cumprimentasse o morto. Não se sabe a reação do petista.
Será que algum dos personagens do encontro pressentiu que, naquela hora, estavam sendo reatados fios interrompidos da história brasileira? Desconfio que não.
Os tempos eram de furiosa desmontagem neoliberal da herança populista dos anos 1940/50. Mesmo aliados, em 1998 PT e PDT -praticamente tudo o que restava de esquerda eleitoralmente relevante- perderiam para Fernando Henrique Cardoso no primeiro turno. O consulado tucano parecia destinado a durar pelo menos 20 anos e trazer em definitivo o neoliberalismo para o Brasil.
BRECHA - Foi por uma brecha imprevista, aberta pelo aumento do desemprego no segundo mandato de FHC, que Lula encontrou o caminho para a Presidência da República. Para aproveitá-la, fez substanciais concessões ao capital, pois a ameaça de radicalização teria afastado o eleitorado de baixíssima renda, o qual deseja que as mudanças se deem sem ameaça à ordem.(1)
Apesar da pacificação conquistada com a "Carta ao Povo Brasileiro" ter sido suficiente para vencer, o subproletariado não aderiu em bloco. Havia mais apoio entre os que tinham renda familiar acima de cinco salários mínimos do que entre os que ganhavam menos do que isso, como, aliás, sempre acontecera desde 1989. Ainda que as diferenças pudessem ser pequenas, elas expressavam a persistente desconfiança do "povão" em relação ao radicalismo do PT.
Depois de 2002, tudo iria mudar. A vitória levaria ao poder talvez o mais varguista dos sucessores do dr. Getúlio. Não em aspectos superficiais, pois nestes são expressivas as diferenças entre o latifundiário do Sul e o retirante do Nordeste. Tampouco no sentido de arbitrar, desde o alto, o interesse de inúmeras frações de classe, fazendo um governo que atende do banqueiro ao morador de rua. Dadas as condições, todos os presidentes tentam o mesmo milagre.
O que há de especificamente varguista é a ligação com setores populares antes desarticulados. Ao constituir, desde o alto, o povo em ator político, o lulismo retoma a combinação de autoridade e proteção aos pobres que Getúlio encarnou.
BURGUESIA EM CALMA - Mas em 1º de janeiro de 2003 ninguém poderia prever o enredo urdido pela história. Para manter em calma a burguesia, o mandato inicial de Lula, como se recorda, foi marcado pela condução conservadora nos três principais itens da macroeconomia: altos superavits primários, juros elevados e câmbio flutuante. Na aparência, o governo seguia o rumo de FHC e seria levado à impopularidade pelas mesmas boas razões.
De fato, 2003 foi um ano recessivo e causou desconforto nos setores progressistas. Ao final, parte da esquerda deixou o PT para formar o PSOL. Mesmo com a retomada econômica no horizonte de 2004, Brizola deve ter morrido em desacordo com Lula, por ter transigido com o adversário.
Ocorre que, de maneira discreta, outro tripé de medidas punha em marcha um aumento do consumo popular, na contramão da ortodoxia. No final de 2003, dois programas, aparentemente marginais, foram lançados sem estardalhaço: o Bolsa Família e o crédito consignado. Um era visto como mera junção das iniciativas de FHC. O segundo, como paliativo para os altíssimos juros praticados pelo Banco Central.
Em 2004, o salário mínimo começa a se recuperar, movimento acelerado em 2005. Comendo o mingau pela borda, os três aportes juntos começaram a surtir um efeito tão poderoso quanto subestimado: o mercado interno de massa se mexia, apesar do conservadorismo macroeconômico.
Nas pequenas localidades do interior nordestino, na vasta região amazônica, nos lugares onde a aposentadoria representava o único meio de vida, havia um verdadeiro espetáculo de crescimento, o qual passava despercebido para os "formadores de opinião".
PASSO DECISIVO - Quando sobrevém a tempestade do "mensalão" em 2005 -e, despertado do sono eterno pela reedição do cerco midiático de que fora vítima meio século antes no Catete, o espectro do dr. Getúlio começa a rondar o Planalto-, já estavam dadas as condições para o passo decisivo.
Em 3 de agosto -sempre agosto-, em Garanhuns (PE), perante milhares de camponeses pobres da região em que nascera, Lula desafiou os que lhe moviam a guerra de notícias: "Se eu for [candidato], com ódio ou sem ódio, eles vão ter que me engolir outra vez".
Até então, a ligação entre Lula e os setores populares era virtual. Chegara ao topo cavalgando uma onda de insatisfação puxada pela classe média. Optou por não confrontar os donos do dinheiro. Perdeu parte da esquerda. Na margem, acionou mecanismos quase invisíveis de ajuda aos mais necessitados, cujo efeito ninguém conhecia bem.
Foi só então que, empurrados pelas circunstâncias, o líder e sua base se encontraram: um presidente que precisava do povo e um povo que identificou nele o propósito de redistribuir a renda sem confronto.
PLACAS TECTÔNICAS - Os setores mais sensíveis da oposição perceberam que fora dada a ignição a uma fagulha de alta potência e decidiram recuar. A hipótese de impedimento foi arquivada, para decepção dos que não haviam entendido que placas tectônicas do Brasil profundo estavam em movimento.
Em 25 de agosto, um dia depois do aniversário do suicídio de Vargas, Lula podia declarar perante o Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social que a página fora virada: "Nem farei o que fez o Getúlio Vargas, nem farei o que fez o Jânio Quadros, nem farei o que fez o João Goulart. O meu comportamento será o comportamento que teve o Juscelino Kubitschek: paciência, paciência e paciência". Uma onda vinda de baixo sustentava a bonomia presidencial.

POLARIZAÇÃO - Para o público informado, a constatação do que ocorrera ainda demoraria a chegar. Foi preciso atingir o segundo turno de 2006 para que ficasse claro que o povo tinha tomado partido, ainda que em certos ambientes de classe média "ninguém" votasse em Lula.
A distribuição dos votos por renda mostra a intensa polarização social por ocasião do pleito de 2006. Pela primeira vez, o andar de baixo tinha fechado com o PT, antes forte na classe média, numa inversão que define o realinhamento iniciado quatro anos antes.
Embora, do ponto de vista quantitativo, a mudança relevante tenha se dado em 2002, o que define o período é o duplo movimento de afastamento da classe média e aproximação dos mais pobres. Por isso, o mais correto é pensar que o realinhamento começa em 2002, mas só adquire a feição definitiva em 2006. Como, por sinal, aconteceu com Roosevelt entre 1932 e 1936.
SEGUNDO MANDATO - Assentado sobre uma correlação de forças com menor pendência para o capital, o segundo mandato permitirá a Lula maior desenvoltura. Com o lançamento do PAC, fruto de um orçamento menos engessado, aumentam as obras públicas, as quais vão absorver mão de obra, além de induzir ao investimento privado.
Em 2007, foi gerado 1,6 milhão de empregos, 30% a mais do que no ano anterior. A recuperação do salário mínimo é acelerada, com aumento real de 31% de 2007 a 2010, contra 19% no primeiro mandato, conforme estimativa de um dos diretores do IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada)2. A geração de emprego e renda explica os 70% de aprovação do governo desde então.
Nem mesmo a derrubada da CPMF, com a qual a burguesia mostrou os dentes no final de 2007, reduziu o ritmo dos projetos governamentais. A transferência de renda continuou a crescer. Foi só ao encontrar a parede do tsunami financeiro, no último trimestre de 2008, que se interrompeu o ciclo ascendente de produção e consumo. Teria chegado, então, segundo alguns, a hora da verdade. Com as exportações em baixa, o lulismo iria definhar.
COMPRAR SEM MEDO - Mas o lulismo já contava com um mercado interno de massa ativado, capaz de contrabalançar o impacto da crise no comércio exterior. A ideia, difundida pelo presidente, de que a população podia comprar sem medo de quebrar, ajudou a conter o que poderia ser um choque recessivo e a relançar a economia em tempo curto e velocidade alta.
Além da desoneração fiscal estratégica, como a do IPI sobre os automóveis e os eletrodomésticos da linha branca, o papel dos bancos públicos -em particular o do BNDES- na sustentação das empresas aumentou a capacidade do Estado para conduzir a economia. Numa manobra que lembra a de Vargas na Segunda Guerra, Lula utilizou a situação externa para impulsionar a produção local.
Surge uma camada de empresários -Eike Batista parece ser figura emblemática, como notava dias atrás um economista-, dispostos a seguir as orientações do governo. A principal delas é puxar o crescimento por meio de grandes obras, como as de Itaboraí -o novel polo petroquímico no Estado do Rio-, as de Suape (PE) e de Belo Monte, na Amazônia. Cada uma delas alavancará regiões inteiras.
Por fim, a aliança entre a burguesia e o povo, relíquia de tempos passados que ninguém mais achava que pudesse funcionar, se materializa diante dos olhos. Que o estádio do Corinthians em Itaquera não nos deixe mentir.
Leia também:
0 comentários