O papa Bento 16 acena para fiéis na Praça de São Pedro, no Vaticano
Em um contragolpe que tenta defender o papa das acusações de ter encoberto os abusos de menores por religiosos católicos, o Vaticano publicou em seu site na internet um "guia para entender os procedimentos adotados pela Congregação da Doutrina da Fé nos casos de supostos abusos sexuais". Segundo Ciro Benedettini, vice-porta-voz da Santa Sé, o guia, escrito e publicado em inglês e destinado a "laicos e não canonistas", foi redigido em 2003. A grande novidade é que o texto afirma, contrariando o costume habitual, que a Igreja "sempre" deve denunciar os pederastas à justiça civil.
O guia começa explicando que a legislação aplicável quando se recebem notícias de casos de pederastia são as normas estabelecidas no "motu proprio" promulgado por João Paulo 2º em 30 de abril de 2001, chamado "Sacramentorum sanctitatis tutela" (Defesa da santidade do sacramento, ou SST na sigla em latim) e no Código Canônico de 1983.
A polêmica SST foi redigida pelo então prefeito da Congregação da Doutrina da Fé (CDF), Joseph Ratzinger, com a ajuda do atual número 2 da Santa Sé, Tarcisio Bettone, então secretário da congregação. Aquela instrução secreta, com o subtítulo de "De delictis gravioribus" (Sobre os delitos mais graves), ordenava que as dioceses locais informassem à CDF e investigassem todas as acusações de abuso sexual de um menor por parte de um religioso; ampliava o tempo de prescrição dos delitos de abusos até dez anos, que começavam a correr quando o menor completasse 18 anos, e reafirmava a necessidade de manter o segredo pontifício sobre os processos canônicos de abusos, sob a pena de excomunhão fulminante e irrevogável.
Daquela rotunda apelação ao sigilo, porém, não há qualquer traço no manual agora divulgado, segundo o porta-voz da Santa Sé para dar o exemplo da política de transparência total adotada pelo papa. Ao contrário, o guia afirma: "Deve-se seguir sempre o direito civil em matéria de informação dos delitos às autoridades competentes".
A publicação do documento é interpretada como uma tentativa posterior do papa de desmentir que sua linha de atuação diante dos abusos foi tolerante, como afirmaram algumas notícias nas últimas semanas.
Os membros da Cúria mais favoráveis a Ratzinger salientaram nos últimos dias que o papa "é o campeão da luta contra a pederastia". Apesar do aparente cerramento de fileiras, e depois de lido o documento, as dúvidas persistem. Se o guia criado em 2003, coincidindo com os escândalos maciços nos EUA, mandava denunciar os casos à justiça comum, por que quase nunca se faz isso? E por que o papa, no poder desde 2005 e até esse momento no antigo Santo Ofício, não controlou o cumprimento dessas ordens nem sancionou qualquer bispo por encobrir abusos?
Nos processos autorizados pela CDF, esta "estuda o caso apresentado pelo bispo local e também pede informação complementar quando for necessário". Então tem várias opções: a) autorizar o bispo local a realizar um processo penal judicial diante de um tribunal local da Igreja (o recurso nesses casos seria submetido a um tribunal da CDF); b) autorizar o bispo local a realizar um processo penal administrativo diante de um delegado do bispo local, com a assistência de dois assessores. O guia também estipula os recursos e as garantias processuais. "O sacerdote acusado é chamado a responder às acusações e a revisar as provas. O acusado tem o direito de apresentar recurso à CDF contra o decreto que o condene a uma pena canônica. A decisão dos cardeais membros da CDF é definitiva."
Caso o clérigo acusado seja julgado culpado, "tanto os processos penais judiciais como administrativos podem condená-lo a uma série de penas canônicas, sendo a mais grave a expulsão do estado clerical. A questão dos danos também pode ser tratada diretamente durante esses procedimentos".
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