Gosto de ouvir rádio enquanto dirijo. É uma corrida de obstáculos, muitos obstáculos. Na programação da quase totalidade das estações imperam clones da Mariah Carey; gatas pernudas e cabeludas que gorjeiam simulando êxtase em um oh-oh-yeah de matar. E isso no engarrafamento! Acaba com o dia de qualquer cristão. É nessas horas de pânico que a Rádio MPB FM reina absoluta como a melhor amiga do trânsito. Mais de uma vez subi a serra com Clássicos MPB, programa diário matinal com a nata da nossa música. Lá tem Belchior, Tim, Jorge, Roberto, Lulu, Cássia, Chico Jorge Maravilha Buarque de Hollanda, Caymmi... Tem também o Palco MPB, o Samba Social Club e o Sexo MPB, à meia-noite, de segunda a quinta. Ouçam ao volante, raras vezes fui traída na minha expectativa. Hoje, não foi diferente.
Saí de casa cedo, chuva torrencial, aquela preguiça braba diante da perspectiva emocionante de passar as próximas horas adaptando o filho no pré-escolar. Entrei no conforto do bólido, liguei o som e Raul Seixas atacou manso: "Às vezes você me pergunta...". Era a primeira vez que o meu filho ouvia Gita, cantei para ver se ele entendia a letra. Quando terminou, breve instante de tensão, o momento mágico do dia nas mãos do disc-jóquei. Se o hit fosse ruim, lá estaria eu condenada a torturar uma criatura que nem completou 2 anos, atrás de algo que o valha entre os mios de americanas carentes. Não foi preciso. Subitamente... Erasmo. Meu Deus, Erasmo! O Carlos! Cantando: "Antigamente quando eu me excedia / ou fazia alguma coisa errada / naturalmente a minha mãe dizia: / ‘Ele é uma criança, / não entende nada’...". Ficamos eu e meu filho ali, ouvindo o Erasmo nos dizer que depois, adulto, queriam que ele fosse um homem e entendesse tudo, mas que ele ainda era uma criança e não entendia nada. Tirou as palavras da minha boca. Meu filho, se tem algo que a mamãe descobriu, é que depois que a gente cresce a confusão piora.
Fui tomada por um amor profundo pelo Erasmo, pela compreensão humana, demasiado humana, que ele tem da vida. Eu sei dos cigarros que o Erasmo fumou no coqueiro verde esperando a Nara, eu sei da vontade que ele tinha de ser o travesseiro dela e da sua dependência e carência da força da mulher. O Erasmo é um pecador falho, mortal. O Erasmo é a versão em carne e osso do herói mítico Roberto. Para quem não ouviu, eu recomendo o último disco do Tremendão. É um discão de rock clássico, produzido pelo Liminha, com letras como: "Não fique mal se eu lhe disser / a guitarra é uma mulher...". E músicas tão lindas quanto Olhos de Mangá, uma homenagem arrastada e sensual ao olhar feminino. Nela, estou orgulhosamente incluída ao lado de Xuxa, minha mãe e outras tantas meninas-moças sensacionais. Só o Erasmo. Quase chorei quando ouvi. Minha devoção vem desde a jovem guarda, mas confesso que não acompanhei os lançamentos recentes do ídolo. Até que há um ano e meio, por aí, ouvi uma faixa do Chico ao lado dele e comprei o seu CD com convidados. Pérola rara que inclui a versão definitiva de Cama e Mesa na voz de Zeca Pagodinho.
Por tudo isso, espanta-me que a MPB FM esteja praticamente sozinha no páreo. Existem rádios que tocam samba, funk. Existem ótimas rádios que tocam música popular brasileira, mas é difícil não ficar chocado com a variedade infindável de hits – baladas, rock, frevo, axé, choro, diz aí, que o Brasil é capaz de produzir, a ponto de alimentar uma programação de primeira, sete dias por semana – e que outras estações não bebam mais dessa fonte. Não acho que a cultura estrangeira seja uma ameaça à supremacia tupiniquim do terceiro milênio. Mas fico besta com a quantidade de submúsica, de baticum pós-disco, de remix tscum tscum, às vezes até usados ao fundo de composições históricas do nosso cancioneiro. Parece um alimento processado do original, um brioche com massa de pão de fôrma. Li uma entrevista do Nelson Motta uma vez, que, aliás, também está na MPB FM com o Sintonia Fina, em que ele dizia que era do tempo em que as canções tinham fim. Eu também, Nelson. Tem dias, na estrada de Santos, em que tenho a sensação de estar ouvindo um looping de lenga-lenga. Quando acontece, ligo o rádio.
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