A carta de 1985, escrita em latim, para a Diocese de Oakland, assinado pelo então cardeal Joseph Ratzinger. A carta dizia que um sacerdote da California acusado de molestar crianças não devia ser deposto, sem um estudo mais aprofundado.
Em 1981, um padre, acusado de amarrar e abusar de dois rapazes em uma casa paroquial da Califórnia, quis deixar o ministério sem muito alarde. Em 1985, quatro anos depois, seu primeiro bispo pediu que ele fosse expulso da Igreja, mas o futuro Papa Bento XVI, então um talto funcionário do Vaticano, assinou uma carta dizendo que o caso necessitava de mais tempo e que "o bem da Igreja Universal" tinha que ser considerado na decisão final, de acordo com documentos descobertos esta semana em processos movidos contra a igreja.
Essa decisão não veio por mais dois anos, o tipo de atraso que está alimentando o maior escândalo de abuso sexual do catolicismo e que, agora, tem incidido sobre o próprio Papa. Como o escândalo se aprofundou, os defensores do Papa tem dito que, bem antes de ele ser eleito papa em 2005, Ratzinger teria estudado com preocupação os abusos sexuais e eliminado os padres pedófilos. Mas o caso do padre California, o reverendo Stephen Kiesle, e a trilha do documento acima mostra que a suposta "urgência" não existiu. A carta que o Cardeal Joseph Ratzinger, mais tarde, escreveu em latim, em 1985, menciona a idade do jovem padre Kiesle - 38 na época - como um motivo para não expulsá-lo do sacerdócio.
Já o porta-voz do Vaticano, reverendo Federico Lombardi, saindo em defesa do Papa, alega que seria errado tirar conclusões baseadas em uma carta, sem compreender o contexto em que foi escrita. "É necessária uma análise aprofundada e séria dos documentos", disse ele.
Mas John S. Cummins, o ex-bispo de Oakland, que escreveu várias vezes a seus superiores em Roma, pedindo que o padre pedófilo fosse deposto, disse que o Vaticano foi especialmente relutante em demitir os padres criminosos. Como resultado, disse, o Papa João Paulo II "realmente desacelerou o processo e o fez de maneira deliberada."
As cartas e memorandos, fornecidos ao The New York Times por Jeff Anderson, um advogado que representa algumas das vítimas, revelam um nível crescente de desespero entre os funcionários da igreja em Oakland por causa dos atrasos do Vaticano. O Bispo Cummins escreveu ao Cardeal Ratzinger, em Fevereiro de 1982: "É minha convicção de que não haveria escândalo se esta petição for atendida. E, de fato, dado a natureza do caso, pode haver maior escândalo para a comunidade se o padre Kiesle for autorizado a retornar às suas atividades pastorais."
No final de 1981 o Cardeal Ratzinger tinha sido nomeado para a Congregação para a Doutrina da Fé, órgão doutrinário da Igreja, e assumiu o cargo doutrinário em todos os casos de abuso. O Bispo Cummins, preocupado com o caso, também escreveu diretamente ao Papa João Paulo II. O Cardeal Ratzinger pediu mais informações, que foram fornecidas pela Diocese de Oakland em fevereiro de 1982, mas somente em 1985, após inúmeras cobranças, receberam a resposta do Cardeal Ratzinger, quando ele enviou uma carta em latim, sugerindo que seu escritório precisava de mais tempo para avaliar o caso.
Ao saber do ocorrido, o Rev. George Mockel, um oficial diocesano em Oakland, escreveu em um memorando ao Bispo Cummins: "Basicamente, eles vão sentar-se sobre o episódio até que o padre esteja mais velho. Meu sentimento pessoal é que isso é lamentável. "
O padre Kiesle foi finalmente deposto em 1987.
O padre Kiesle foi condenado pela primeira vez de molestar crianças em 1978, apenas seis anos depois que ele foi ordenado. Ele não contestou a uma acusação de conduta indecente, enquanto ele era um pastor de Nossa Senhora do Rosário, em Union City, Califórnia. Mike Brown, porta-voz da Diocese de Oakland, disse que após a condenação de Kiesle, a diocese restringiu suas funções, mas não poderia tomar nenhuma decisão mais drástica sem o aval da cúpula da Igreja Católica..
Em 1985, enquanto o bispo em Oakland estava pressionando o Cardeal Ratzinger para expulsar Kiesle, o padre começou a trabalhar como voluntariado na pastoral juvenil em uma de suas paróquias, em Pinole, Califórnia. Maurine Behrend, uma ex-funcionária da diocese, soube da condenação de Kiesle e alertou o chefe do escritório do ministério da juventude e pessoalmente advertiu o Bispo Cummins. Em maio de 1988, ela escreveu uma carta indignada a um funcionário da igreja, exigindo saber por que "um molestador de crianças é coordenador do ministério de jovens na paróquia de St. Joseph's, em Pinole".
Finalmente, em 2002, o padre Kiesle foi acusado de vários casos de abuso. Mas essas acusações tiveram de ser descartadas, pois muitos dos casos já estavam prescritos, de acordo com a lei norte-americana. Apesar disso, ele acabou não contestando, em 2004, uma acusação de molestar uma criança em sua casa de férias em Truckee, na Califórnia, em 1995, e foi condenado a seis anos de prisão.
Rick Simons, um advogado de Hayward, na Califórnia, que representou duas das vítimas, disse que conheceu o Padre Kiesle quando ele prestou seu depoimento na prisão. "De todos os padres que abusaram de crianças que conheci, e há provavelmente uma dúzia, ele foi de longe o mais sociopata e sem remorsos", disse ele.
Atualmente, Kiesle faz parte do registro de ofensores sexuais na Califórnia e vive em Walnut Creek, Califórnia. Ele mora em um condomínio fechado, onde os guardas impedem os jornalistas de tentar qualquer contato.
Simons disse que cerca de oito vítimas de Kiesle acabaram chegando a um acordo com a Diocese de Oakland, em 2005, e que, em média, cada um recebeu US $ 1 milhão.
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