O despertar para a leitura é um maravilhoso acontecimento na vida de qualquer cidadão. Tentei, desde a mais tenra infância, fomentar a curiosidade de meus filhos pelos livros. Leio na cama para eles, visito assiduamente as livrarias e, não poucas vezes, completo as lacunas do meu conhecimento graças à biblioteca das crianças. Foi assim com a obra dos irmãos Grimm e com algumas versões de clássicos como Gilgamesh. Essa é insuperável, eu recomendo em especial. São três volumes ilustrados da trajetória do herói babilônico que sonhava atingir a vida eterna. Embora tenha me empenhado em aproximar a prole da literatura, sei que daqui a pouco dependerá da vontade dela submergir nas letras, ou da sorte de ser apresentada a algo que a interesse. O ser humano é um bicho altamente influenciável.
Fora Asterix, Mônica e uma ou outra aventura de O Sítio do Picapau Amarelo, lidos com grande prazer antes dos 10 anos, a literatura não sorriu para mim de imediato. A escola também não ajudou muito. O primeiro volume de peso – peso leve, já que era fininho – que encarei oficialmente foi Chamado Selvagem, de Jack London, no 5º ano. Uma história de morrer de tão triste sobre um cachorro que tenta reencontrar seu destemido dono no Alasca – acho que se passa no Alasca –, durante a corrida do ouro nos Estados Unidos. Não tenho certeza, foi como guardei. Nela, homens ávidos e brutais maltratam o herói de quatro patas fazendo-o puxar trenó na nevasca, dormir ao relento e comer porcaria. Já virou até filme em Hollywood, estrelado por Clark Gable, mas é deprimente demais para uma criança mal saída do primário. Confesso que me causou má impressão.
Já maiorzinha, no fim do ginásio, a professora de português elegeu Uma Vida em Segredo, de Autran Dourado, para os trabalhos letivos. Trata-se da vida de uma moça solitária que se vê obrigada a morar de favor na casa de parentes. A tremenda melancolia da heroína humilhada, reclusa e predestinada a uma solteirice sem volta fez parte do meu currículo em duas séries de dois colégios. Até hoje não entendo o fascínio catedrático por esse drama tão sem saída. É um romance poético, Autran Dourado é um autor extraordinariamente delicado, Suzana Amaral fez um filme extremamente sensível da trama, eu sei dos valores da obra, mas ela me parece um tanto depressiva para quem está acordando para o mundo. Em mim, deu angústia.
Até porque, a essa altura, eu já havia sido atingida por um raio chamado O Tempo e o Vento. A verdade é que fui tomada por uma excitação sexual sem par que me aprisionou ao épico de Erico Verissimo. Primeiro, na impressionante cena da curra de Ana Terra por uma roda de gaúchos bandoleiros, depois no amor furioso de Capitão Rodrigo por Bibiana. Os pampas, a Guerra dos Farrapos, a poesia, veio tudo a reboque do sexo transbordante. Foi graças aos hormônios mais primitivos que me afeiçoei à prosa. O Tempo e o Vento foi meu Crepúsculo.
Ler requer um tempo raro, e prefiro gastá-lo em enredos mais suculentos do que o de vampiros vegetarianos que jogam beisebol. Não li o original, mas fui assistir a Lua Nova no cinema com meu filho. A narrativa é cirurgicamente dirigida às necessidades das mocinhas em flor, mesmo as de 40 e algo, como eu: vampiro belo, jovem e perigoso, dotado de coração fiel, ama à loucura a virgem indefesa e teme feri-la, condenando-a às trevas. Reconheço que deve ter feito muita jovem suspirar na leitura. Quem sabe elas não partem daí em direção a mares mais revoltos?
O fogo juvenil é uma força motriz preciosa, o ensino precisa tê-lo como aliado. As palpitações com Erico podem ser a porta para a ironia dos Machados, a selvageria dos Nelsons, as perversões dos Nabokovs e a poesia dos Manns, Dostoievskys, Shakespeares, Euclides, Clarices e Ubaldos. Para os menorzinhos, vale Harry Potter, valem o mangá da vida de Buda e a coleção da Cia. das Letras que inclui O Médico e o Monstro, Drácula, As Viagens de Gulliver e Vinte Mil Léguas Submarinas. Vale demais a última edição de Alice no País das Maravilhas, com ilustrações de Luiz Zerbini, valem Mafalda, Esopo, os Grimm e Millôr Fernandes, cujo recente lançamento, O Leão Maurício, é obrigação na estante de qualquer moleque. A coleção do Millôr para a juventude, aliás, é um presentão de Natal. Pode incluir na bolsa, além do Leão Maurício, Poesia Matemática e A Verdadeira História do Paraíso.
Fernanda Torres
A partir da Veja Rio. Leia no original
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